sexta-feira, 26 de abril de 2013

Jão, bicho solto

 Seis e quarenta. Dirigindo o carro. Caminho para a escola. Saio da Rodovia do Contorno e entro em Cariacica, adentro o bairro Flexal. A qualidade do asfalto muda, desço a primeira ladeira. Alguns alunos gritam por carona. Nunca o faço. O mundo hoje anda muito delicado. Estou em terreno plano agora, primeira reta, casas humildes à esquerda e à direita. Ando devagar porque não tenho pressa e eis que me chama a atenção um cão amarelo, de porte médio, da raça vira-lata terrier, a quem chamarei de Jão.

Jão me conquistou no ato. Ele raspava insistentemente com a pata direita (era destro) as correntes de um portão de uma casa a minha esquerda. Como vinha em marcha lenta pude observar a cena. A casa estava silenciosa, a rua ali estava quieta e eu até conseguia ouvir o tilintar da corrente ritmando com a obstinação do cão. Pobre Jão, pensei, ou tem o costume de sair para namorar todas as noites e, finalmente, deu com as portas fechadas ou foi abandonado por sua família e a casa em que tenta retornar está vazia. Existia também possibilidade de estarem somente dormindo os habitantes daquela humilde residência e Jão logo seria reinserido ao seio familiar.

Chego ao trabalho. Passo o portão grande, depois pelo portão médio, pego o corredor pelo portão pequeno. Passo pela secretaria (vazia porque sem funcionário contratado) e a diretoria ainda fechada. Entro na sala dos professores. Bom dia, a minoria responde, costume dos educadores. Abro meu armário, retiro minhas coisas. Pego minha caneca para tomar o café e esquentar os pulmões para aquela manhã e ouço: – É, professor, você foi privilegiado, não vai dar a última aula por causa da reunião – diz um dos docentes. Respondo com um surpreso “reunião? Nunca me lembro delas!”

O docente refresca-me a memória. Dias atrás houve uma briga fora da escola entre meninas e fizeram um vídeo da peleja. Um dos professores iniciou a dança e convocou a direção que convocou a coordenação que convocou os alunos que convocou os pais e responsáveis e foi como se não convocasse ninguém.

Ciente da situação, a manhã seguiu normalmente nos três primeiros horários. No intervalo, de volta a sala dos professores, ouço um dos colegas reclamando: – Que porcaria! Não disseram que teria reunião. Agora é aula normal. Vou ter que dar aula!” – sorri para ele e falei algo genérico para não demonstrar opinião demais. Perguntei a outro professor se teria ou não teria reunião e obtive uma resposta afirmativa, teria. Contudo, somente eu não daria a última aula! Que diabo, pensei.

A quarta aula seguiu, correção de exercícios, e, finalmente, batem à porta: – Professor, pode trocar. – dizem isso sempre que termina a aula para mudarmos de turma, pois o sinal causa frenesi nos alunos. Despeço-me, pego minhas coisas e vou em direção ao oitavo ano. Dou-me com a sala vazia! Onde estão? Alguém da limpeza avisa-me que eles estão na sala doze. Vou até lá para confirmar e vejo o coordenador saindo dali. “Ei, professor, gostaria que você fosse à reunião e dissesse algo para a turma”. Puts, assim do nada, pensei, vou dizer que brigar é feio? Olhe só o Anderson Silva, herói nacional, ícone cultural. Orgulho da nação.

Entro na sala doze e vejo o professor que copiou o vídeo da internet, a coordenadora, uma pedagoga, todo o oitavo anos e três, apenas três pais. Além, claro, do diretor falando sobre crime, punição de jovens pela lei, redução da maioridade para dezesseis anos... Interrompida a interminável arenga pela preocupação com o pouco tempo, reproduziram o esperado vídeo.

Abre a cena, a câmera mostra a panorâmica de uns vinte alunos em torno de duas meninas, uma morena de cebelos lisos e outra morena de cabelos cacheados. O áudio era uma barulheira sem sentido. Percebia-se pelo movimento das bocas e pelos gestos faciais endurecidos que as duas trocavam os últimos deselogios (inventei agora!), apontando uma o dedo na cara da outra. De repente, a aluna de bela cabeleira solta, lisinha, puxa para trás suas madeixas, arremata num coque ligeiro e arregaça as mangas. A outra prende seus belos cabelos cacheados com igual perícia e imita a desafiante, exibindo os bracinhos finos. Distraído com a produção do premier combate, fui pego de surpresa quando a lutadora de cabelos cacheados saltou por sobre a de cabelos lisos e o fight teve início. A peleadora de cabelos soltos logo levou a oponenta (a exemplo de presidenta) para o chão. A plateia do vídeo hurrava em delírio. Elas rolaram para a direita, rolaram para a esquerda e fim. Acabou o combate. Atenas teria vergonha de suas (então descabeladas) guerreiras e representantes das artes marciais suburbanas. Os alunos que estavam em sala de aula soltavam risinhos nervosos ao ver seus pares fazendo caretas em frente à câmera tirando sarro da situação e gritando "nóis aqui é tudo bicho solto!". Eu, neste momento, segurava o riso e o divertimento.

Os adultos recriminaram os humores infantis, eu mantive o meu siso. O diretor iniciou outra conferência: o risco de se ter vítimas fatais nesse tipo de briga, o conceito de crime doloso e crime culposo... Terminado o discurso, deram a palavra aos três pais ali presente:

Pai I disse: – É lamentável que aconteça um negócio desse. Esse tipo de comportamento mostra que a violência tá banal. É lamentável que jovens venha para a escola rumar briga enquanto seus pais estão trabalhano para botá comida na mesa. Já pensou se uma de vocês machucam seriamene a outra. Viver com culpa. É lamentável.

Mãe I disse: – Isto tá assim porque a educação mudou. No meu tempo, não tinha isso de livrinho para levar pra casa e ficar lendo. Nóis tinha que copiar tudo na mão, ali no caderno só. E se achasse ruim e reclamasse com o professor? Levava uma tapa na cara, que ninguém respondia professor, não. Hoje é os alunos que manda em sala de aula. A minha filha estudou aqui nessa escola e hoje tá bem de vida. Viaja e leva nóis tudinho junto, só com o dinheiro dela. O pobrema é que esses mininos desperdiçam seu tempo. Minha filha não tinha essas amizade, não, ela tinha honra. Era de casa pra escola e da escola pra casa.

Pai II disse: – É muito triste o pai confiar em um filho que ele tá na escola, estudando. E na verdade ele está arrumando chacrinha pela rua. Ainda bem que não vi o rosto do meu garoto ali, porque se é o meu a gente resolve na cinta lá em casa.

Fui convidado a falar depois de saber que o motivo da briga foi por vaidade e pela atenção caprichosa que disputavam por um menino loirinho, que pelo que soube não estava nem aí para as duas. Falei o que queriam ouvir e qualquer coisa sobre animais irracionais, os brutos, a educação para humanizar o homem e torná-los animais racionais: menos brutos. Falei também sobre como é fácil parecer vulgar aos olhos do outros e isso e aquilo... Meu discurso teve efeito, principalmente para os adultos e pedagogas que o retomaram, falando mais uma vez sobre o papel da educação. No entanto, eu mesmo não acreditava nem um pouco no que se dizia acerca dos animais racionais nem no papel da educação: somos é bichos, pensava comigo, um bando de bicho besta.

Terminado o enfado daquela reunião, retornei para minha casa para almoçar. Fazia exatamente o caminho oposto. Asfalto de péssima qualidade, desviando de buracos, casas humildes. Na última rua para subir ladeira e pegar o Contorno, à direita, para minha surpresa, quem estava lá? Jão, o cão. Ainda esquecido pelo povo de casa, continuava obstinado, raspando o mesmo portão e fazendo tilintar a mesma corrente. Aquilo sim, era luta. Sem cultura, sem costumes, sem vaidades, sem honra caprichosa. Apenas o desejo animalesco de voltar aos seus. Ulisses sempre vale menos que Argos, o fiel cachorro, penso eu. Se déssemos voz ao Jão e um pouco de humanidade ele gritaria: “abre a porcaria desse portão, Maria, ou eu lhe quebro os dentes!” Fazemos assim, não porque somos bichos: é porque somos gente!